16 de dezembro de 2010
Já dizia dona Odete ...
"Paciência, minha filha... nessa vida é preciso ter paciência..." Me diz dona Odete com seus olhos azuis sorridentes enquanto segura minha mão com delicadeza e sapiência no alto dos seus 90 anos.Conversa que durou talvez uma hora, mas que atravessou décadas, e me apresentou a menina Odete e seu amor platônico aos 16 anos pelo vizinho que somente a cumprimentava cordialmente, e que era declaradamente apaixonado por sua namorada. História breve como um cometa, pois um acidente interrompeu a trajetória do rapaz. Não se sabe ao certo qual foi o destino da moça namorada, pois deixou a cidade após o ocorrido. Onde quer que o rapaz esteja, deve estar lisonjeado, pois a senhora afirmou que ele talvez tenha sido seu único e verdadeiro amor. Odete mostrou-se romântica e tradicionalista, especialmente por ter sido educada em colégio de freiras. Porém também era muito obstinada, sem dúvidas uma moça ousada, à frente de seu tempo, pois aos 17 anos, para fugir das surras do pai (que desaprovava suas conversas diárias com seu então namorado), planejou algo certamente inesperado pela família e propôs ao rapaz: "Vamos fugir?". Movidos talvez pela inconsequência jovial, passaram a noite fora (neste momento um detalhe do plano me foi bem enfatizado: ele não a tocou). Na manhã seguinte, ao retornar à sua casa, seu pai logo tratou de providenciar o casamento. O plano foi um sucesso! Os olhos de dona Odete sorriram serelepe, e então perguntei se ela amava seu então recém-esposo. Tal mudança em sua vida devia ter sido motivada por algo muito maior que somente coragem. Para meu total espanto, a resposta foi negativa: "Eu não o amava, nunca amei. Casei para sair de casa. Sempre gostei muito de sair, de dançar, e casada... vieram os filhos. Um a cada ano. Não pude aproveitar esse tempo, me dediquei a eles." Antes de qualquer ar de ressentimento aparecer, dona Odete falou firme, porém serena: "Mas a vida é muito boa, só precisamos aproveitar, sermos felizes e termos paciência. O desespero não resolve nada, só piora as situações. Aja com calma que tudo dá certo." Talvez essa tenha sido sua fórmula da felicidade, mesmo diante da convivência de tantas décadas com um desamor que a traiu por 9 anos. Odete pulso firme, mulher de fibra, expulsou o recém ex-marido de casa e prosseguiu sua vida...de mãe. Após certo tempo casou-se novamente. Amor maduro com um senhor uns poucos anos mais velho. Dessa relação não vieram filhos, mas sim sua realização enquanto mulher. E então ouço da moderna porém tradicional senhora (que desaprova o casamento de véu de sua neta), uma confissão que nunca ouvi nem de minhas melhores amigas: "Não há nada melhor que ser realizada sexualmente por um homem. Mas a entrega deve ser feita somente por muito amor, pois seu corpo é seu bem maior." Nesta hora não tínhamos idade, tampouco distância de gerações. Voltei à indagar sobre sua história, e soube que somente a morte interrompeu essa união. Dona Odete desfruta agora da vida independente, frequentando bailes (onde prefere dançar sozinha, pois um tombo a deixou dependente de uma bengala, logo cansa depressa e diz não ter fôlego para acompanhar os jovens), passeando por aí, seguindo blocos de carnaval com a animação de uma menina, vendo a vida, conhecendo pessoas novas. Numa dessas conversas, debateu com um senhor uma frase muito gasta ultimamente: Os jovens são o futuro do País. "Que futuro esse país vai ter, se à noite esses jovens sujam a cidade, violam patrimônios, quebram bancos de praça...?" Falou então a desapontada cidadã. "Não aplaudi prefeito no evento de ontem. Ele fez várias coisas boas, mas também muita coisa ruim." Tentei acompanhar seu raciocínio, tentei pensar no país daqui a muitos anos. Será que eu, beija-flor minúsculo tentando apagar o incêndio da floresta, estou fazendo a diferença nesse futuro? Curiosamente, dona Odete pareceu adivinhar meu pensamento e me aconselhou: "Você é uma menina de ouro, estude e não tenha pressa em fazer as coisas. Não faça nada para somente não ser vista como quadrada pelas suas amigas." Tentei justificar minha emoção, minha admiração por aquela senhora, expliquei que não tenho mais meus avós e tinha curiosidade (e carência). Queria saber mais sobre essa época vivida por ela, e como vêem o mundo de hoje. Dona Odete se surpreendeu e se pôs ainda mais atenciosa. "Não sabemos do futuro. Às vezes achamos que não vai acontecer... depois você pode ver que aconteceu. Aí quem sabe você não vai na minha casa para conversarmos?" Outras pequenas histórias ainda surgiram, talvez cotidianas para ela, mas grandes lições para mim, como em seu comentário sobre a necessidade atual de falarmos outros idiomas, e sua escassa bagagem no assunto. "Tudo que sei de inglês é muito pouco, aprendi nas legendas dos filmes que via com meu pai quando o cinema passou a ser falado, lá por 1937... porque antes era mudo." Eu então quase me envergonho por poder assistir um filme em um aparelho que cabe na palma da mão, e desejo por um instante ter a sensação de ir ao cinema para ver um filme falado numa época que todos eram mudos. Viva a magia do passado. A viagem chega ao fim. Com a voz embargada me despeço. Dona Odete segura minhas mãos, beija meu rosto e diz com carinho "Que você tenha muita sorte na sua vida, sempre faça uma oração agradecendo ao acordar, se alimente bem, evite preocupações... e paciência, minha filha... nessa vida é preciso ter paciência..."
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